Os navegadores eram as grandes celebridades da Era dos Descobrimentos. Foi um período marcado pela disputa entre eles, não apenas pelas riquezas do novo mundo, mas pelas glórias que as conquistas lhes rendiam em suas terras de origem. O espanhol Cristovão Colombo e o britânico John Cabot, por exemplo, quase se mataram na disputa pela rota definitiva para o Oriente. Já o francês Jean-François de La Pérouse e o inglês James Cook brigaram pela exploração das ilhas no Pacífico. Nenhuma dessas rixas é tão próxima dos brasileiros, no entanto, quanto as desavenças entre Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama. Essa história ganha riqueza de detalhes com o lançamento no País de Cabral, o Desconhecido, obra do pesquisador português João Morgado.

O autor os descreve como “personagens opostos”.

• Cabral era um nobre de primeira linhagem, um humanista. Cavaleiro da Ordem de Cristo, a mesma do rei, era adepto do Renascimento. Aos catorze anos, deixou a cidade de Belmonte, onde vivia com a família, para estudar na corte de Lisboa com os grandes mestres.

• Vasco da Gama pertencia à Ordem de Santiago — na época, as organizações religiosas eram o que os partidos políticos são hoje. O navegador não era nobre e o conselheiro real Afonso de Albuquerque o via como um “bárbaro”. Sua primeira viagem às Índias, embora importante estrategicamente, foi um desastre político: Vasco da Gama foi preso, regressou com um terço dos homens, mercadorias de segunda linha e sem um único acordo comercial importante. “O único feito foi ter sobrevivido para contar que tinha lá estado”, escreve Morgado.

Vasco da Gama: “Um bárbaro”, para o conselheiro real Afonso de Albuquerque (Crédito:Divulgação )

Diplomacia e comércio

No planejamento para a segunda expedição às Índias, D. Manuel ouviu críticas ao nome de Vasco. “Quem deveria assumir a armada, então?”, questionou o monarca. “Pedro Álvares”, sugeriu outro conselheiro, Fernando de Menezes.

Não foi apenas uma indicação política. Pedro Álvares Gouveia — o sobrenome do pai, Cabral, era dado apenas ao primogênito, e Pedro era o segundo filho — tinha sido preparado para uma missão como aquela.

Foi um grande líder militar por oito anos nos combates em Tânger, no Marrocos, norte da África, onde se destacou pela coragem e inteligência.

Ao currículo heroico somava-se um detalhe curioso: os Cabral eram muito altos para a época, e essa vantagem nas lutas de espada trazia a admiração e respeito de todos. Além da coragem, ser um homem culto lhe favorecia. O comércio nas Índias não era baseado apenas na força militar, mas em negociações onde o seu tino para a diplomacia era um diferencial positivo.

Quando Cabral foi escolhido para liderar a armada, Vasco da Gama ficou irado. Descreveu a escolha como “uma punhalada nas costas por parte daquela corja de Cabrais e Albuquerques”, escreveu, criticando as famílias fidalgas que o desprezavam por não ter raízes aristocráticas.

Apesar da revolta, obedeceu ao rei e auxiliou o rival. Vasco da Gama escreveu uma carta com orientações marítimas, “proveitosas para o bom sucedimento” da missão. Cabral agradeceu e, ao ler as instruções aos seus homens, ironizou: “Nada escreve Vasco da Gama que não saibamos nós”. Cabral partiu em direção às Índias, mas, antes de chegar ao seu destino, desembarcou em outro lugar: a Terra de Vera Cruz, rebatizada mais tarde como Brasil.

“Cabral disse não ao rei e foi esquecido”
João Morgado, biógrafo de Pedro Álvares Cabral

“Eles eram contemporâneos e disputavam a posição de favorito de D. Manoel”, diz o pesquisador João Morgado (Crédito:Divulgação )

O que o fascinou em Cabral para despertar essa profunda pesquisa?
Um bom livro é a resposta a uma pergunta necessária. Por que Vasco da Gama é herói nacional em Portugal, e Cabral é um desconhecido? Os livros não explicam e eu queria saber.

Depois que Cabral e Vasco da Gama voltaram das Índias, o rei queria mandar uma terceira expedição. Mas queria dividir a armada entre dois capitães; Cabral cuidaria do comércio e Vicente Sodré, da ala militar. Cabral se recusou. O problema é que ninguém diz “não” ao rei. Ele foi esquecido.

Como decidiu focar o livro na rivalidade entre os navegadores?
Costumamos estudar as histórias separadamente, um personagem de cada vez. Mas eles eram contemporâneos e disputavam a posição de favorito do rei. Achei que esse era um bom ponto de partida.

Ser membro da Ordem de Cristo foi decisivo para a escolha de Cabral?
Sim. A Igreja tinha muita força e considerava Vasco da Gama um degenerado. Mas havia uma razão comercial: a armada era formada por barcos de comerciantes privados, cujo objetivo era lucrar com o negócio. Eles preferiam um nome que inspirasse mais confiança, um diplomata como Cabral. A primeira viagem, liderada por Vasco, teve muitos problemas políticos.

A descoberta do Brasil, no caminho para as Índias, foi um acidente ou algo intencional?
A missão oficial de Cabral era ir às Índias em busca de especiarias. Elas valiam uma fortuna, eram vendidas a preço de ouro. A carta de instrução do rei diz “vá com rapidez e volte a Portugal”. Sair um pouco da rota teria sido normal, os navegadores aproveitavam os ventos do Atlântico e depois voltavam ao litoral do continente africano. Mas há provas, como o Tratado de Tordesilhas, que indicam que Portugal sabia que havia terras mais a oeste. Outro navegador, Duarte Pacheco Pereira, já havia visitado a costa do Brasil em uma missão sigilosa. E há o mapa de José Visigodo, que indica a localização do Brasil.